Educar para transformar
Escola é offline
A escola resiste e ainda guarda um tesouro da humanidade: a solidez corpórea, artefato biológico e cultural em vias de […]
23/05/2023 | POR Colégio Santo Agostinho
Colaborou com este post:
Aleluia Heringer Lisboa
Diretora de educação, relações institucionais e ASG do Colégio Santo Agostinho
A escola resiste e ainda guarda um tesouro da humanidade: a solidez corpórea, artefato biológico e cultural em vias de extinção. Nesse espaço, pessoas têm afazeres estruturados e mediados por relações humanas. Há ali uma ordem que é terrena. As palavras e os objetos guardam profundidade, relevo e peso. Ainda existe a morosidade das horas, do dia e da noite, entremeados com ciclos alternados e suas pausas. As estruturas físicas criam interdições, bloqueando nossa ansiedade e nos ensinando, silenciosamente, sobre a paciência. As pessoas com suas simpatias, antipatias, impulsividade ou doçura nos constrangem a pensar antes de falar. Responde-se pelos próprios atos.
Nesse lugar ainda é possível encontrar a ponte com um passado recente em que toda a comunicação se dava mediada pelo gestual e olhar. As amizades são cultivadas e levam tempo, não sendo possível tê-las aos borbotões. O excesso de coragem, os rompantes de insanidade, possíveis no meio digital, ali esmaecem. Daí, ser mais comum do que se pensa nos depararmos com mundos paralelos: um desses, aquilo que acontece na escola e o outro, aquilo que é dito sobre a escola.
Nesse sentido, estar fora da linha, desligado e sem conexão colabora com a preservação da nossa sanidade. Esse lugar, quase museu das coisas vivas, é perturbador; contudo, imprescindível, pois ainda é capaz de fazer contrapontos ao artificial, superficial, apressado e vazio. Não podemos nos esquecer de que hoje e, ainda por um bom tempo, vamos conviver com as sequelas desse período distópico das câmeras fechadas do ensino remoto.
Essa preocupação não é um devaneio conservador e muito menos uma fala isolada, mas encontra respaldo nas ideias daqueles que pesquisam sobre o desenvolvimento humano e por aqueles que hoje pesquisam e escrevem sobre as relações humanas de forma mais ampla. Byung-Chul Han, no livro “Não-coisas” (2022), sinaliza que o pensamento é um processo decididamente analógico.
“Antes de compreender o mundo em conceitos, ele é comovido pelo mundo (…) o afetivo é essencial para o pensamento humano”. O corpo ganha relevância na escrita de Yuval Noah Harari, na obra “21 lições para o Século 21”, quando afirma que “pessoas separadas dos seus corpos, sentidos e entorno físico, sentem-se alienadas e desorientadas”. É categórico ao dizer que “humanos têm corpos”. Corpos esses que, segundo o Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti, carecem de “gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana”.
Diante da força que ganham as “soluções” tecnológicas digitais pensadas para a educação básica, fico a pensar no lugar das soluções humanizadoras, corporais e terrenais. Quanto mais o digital ganha espaço, mais forte precisa ser o trabalho que neutralize os seus efeitos colaterais. Quanto mais próximo estivermos da educação básica e mais nova for a criança, mais o offline precisa ser considerado. Será preciso muita lucidez e coragem para fazermos o movimento da piracema e nadar contra a correnteza, para que nossas crianças e jovens tenham asseguradas as experiências próprias de comunidades vivas e, assim, possamos mantê-las acordadas.